«Livre de Letra» é o espaço de opinião de Rui Loura, editor-geral do Maisfutebol.

Lembro-me do dia: eram horas de almoçar e de espreitar a corrida pelo canto do olho, uma tradição obrigatória ao domingo, mesmo na mesa de família, para quem cresceu a amar desporto.

Ayrton Senna bateu no muro e o mundo parou! Não só o meu mundo; o mundo todo, mesmo. Todo, tirando o mundo das corridas, claro, porque nesse, já se sabe, «the show must go on»...

Senna estava morto, ali, no carro, cabeça caída sobre o ombro, tombada, inerte, horrivelmente quieta, desamparada, num quadro trágico demasiado perfeito para poder ser falso.

Chorei, logo ali.

Sim, o capacete amarelo tremeu, num espasmo neurológico frustrado, de quem se despede da vida, o que ainda deu aos crentes uma esperança de que sobrevivesse, porque esses, os crentes, se recusam a aceitar a tragédia e querem acreditar – ou negar o óbvio, sei lá – que o melhor de todos não podia ir-se embora.

E, assim, quis ter esperança quando foi levado de helicóptero para o hospital, onde acabou por ser declarado o óbito pouco depois. Se tivesse morrido, oficialmente, em pista, não teria havido corrida...

Nesse fim de semana trágico, convém não esquecer, já tinha morrido o austríaco Roland Ratzenberger, nos treinos. E um muito jovem Rubens Barrichello tinha-se despistado de forma aparatosa, sem ferimentos graves.

Senna andava stressado. Fosse pela vida pessoal ou pela profissional.

Estava, finalmente, na equipa para a qual se queria transferir desde que a McLaren tinha entrado em queda; guiava o carro que era, supostamente, o melhor. E, no entanto, as coisas não estavam a correr bem.

E andava preocupado com a segurança dos pilotos. De todos. Queria relançar a Comissão de Segurança dos Pilotos. Porque, um dia, alguém ia morrer. Alguém...

Uma morte tão difícil de aceitar, como o acidente de explicar.

A história diz que tinha uma bandeira da Áustria no carro, eventualmente para prestar homenagem a Ratzenberger, em caso de vitória. Tinha acabado de fazer a melhor volta quando bateu...

Ayrton tinha 34 anos. Era quase ‘português’, desde aquela primeira vitória na carreira, no Estoril, nove anos antes, debaixo de um dilúvio que dava dó. E causava espanto. 

Os anos seguintes tiveram momentos poéticos e polémicos; esotéricos!

Aquela ‘pole’ no Mónaco (ah! O Mónaco de Senna!) deixando o colega/rival Prost a mais de um segundo, quando ‘falou com Deus’ !

Sim, antes da prova em que, para completar a ‘humilhação’, arriscou demais e bateu, perdendo a corrida para o francês…

Porque Senna era bom, o melhor, mas não era perfeito; era humano. Irritava-se com as injustiças (Balestre, Balestre...) preocupava-se, errava, podia ter mau feitio, dentro da sua imensa simpatia. 

Mas era mágico: ganhava corridas com a caixa de velocidades estragada (sim, os carros tinham volante e alavanca de mudanças em vez de consolas de videojogos!) fazia incríveis recuperações à chuva, tão abençoada para ele como para um agricultor nos confins de África! Ayrton navegava enquanto os outros patinavam!

Senna ganhava sem ter o melhor carro. Deve ter sido o último a conseguir fazê-lo. Morreu quando o teve.

A Fórmula 1 mudou muito. Surgiram grandes campeões, recordistas de títulos, de vitórias e de ‘poles’. Nenhum como Senna. Ponto!

Nesse dia não almocei. E ainda perco o apetite quando me lembro daquela fatídica curva de Tamburello, naquele maldito circuito de Imola, naquele estúpido Grande Prémio de San Marino.

Nos outros dias almoço bem. Mas já não espreito as corridas.

Nota: durante a minha passagem pela SuperSport, na África do Sul, ‘voltei’ à Fórmula 1: narrei treinos e corridas, porque tinha de ser. Apenas para confirmar o que sempre pensei: já não gosto de Fórmula 1. Há 30 anos.